sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O anel de Giges

O texto a seguir faz parte do livro “A República” de Platão. É Glauco, irmão de Platão, e também discípulo de Sócrates quem fala. Ele está em plena discussão com seu mestre, procurando entender o real sentido do que seria a Justiça. Para defender sua tese relata a lenda de Giges, o pastor, figura dos homens honestos. Na lenda, Giges que é pacífico como o rebanho que conduz às pastagens, fiel e pontual servidor de seu senhor, o rei da Lídia, comete as piores injustiças, os crimes mais odiosos, por causa de um acontecimento acidental, a descoberta de um anel maravilhoso que o torna invisível. As peripécias da descoberta, o tremor de terra, o cavalo de bronze, o cadáver gigantesco, a experiência das virtudes do anel, por mais surpreendentes e dramáticas que sejam, não constituem a verdadeira tragédia, isto é a descoberta do verdadeiro significado da justiça.
Glauco; toma ao pé da letra a história do anel e conclui que ninguém praticaria a justiça se fosse como Giges, invisível, isto é, se não estivesse submetido à vigilância das leis. Em conseqüência, a injustiça, que todos os homens cometem logo que são entregues a si mesmos, é vista por todos como um bem; e a justiça longe de ser um bem verdadeiro, é só uma convenção, contrária à sinceridade. Os seres humanos só a praticariam atos de justiça por temerem serem eles mesmos vítimas da injustiça. Sócrates tomará outros caminhos, que levarão a mostrar que a injustiça é o mal mortal da alma e que a justiça é o mais autêntico dos bens.


Ora, que aqueles mesmos que, por impotência em cometer injustiça, tratam de ser justos e não se esforçam de bom grado, é do que nos daríamos conta; não poderíamos fazê-lo melhor lançando uma hipótese como esta: depois de ter dado licença a cada um de fazer tudo o que pudesse querer fazer, tanto ao justo quanto ao injusto, nós os acompanharíamos em seguida, observando aonde a inclinação conduzirá cada um. Dado isto, surpreenderíamos o justo em vias de ir ao mesmo fim que o injusto, em virtude da cobiça por mais, deste fim que é natural a todo ser buscar como um bem, enquanto que por imposição a lei o desvia em direção ao grande caso que ele deve fazer da igualdade! Teríamos a melhor ilustração da espécie de licença que falo se pudesse acontecer a cada um desses dois homens possuírem um poder análogo ao que, segundo a lenda, coube outrora a Giges, o lídio. Ele, vocês sabem, era um pastor empregado do príncipe que reinava até então na Lídia; depois de uma chuva abundante e de um tremor de terra, a terra se abriu num ponto e um abismo se produziu no lugar do pasto. Vendo isto, cheio de surpresa, desceu ao abismo e, entre outras maravilhas, comuns nos contos, percebeu aí um cavalo de bronze, oco, com janelas que lhe permitiram, inclinando-se para o interior, ver que aí se achava um cadáver (era evidentemente um), de um tamanho que sobrepujava o de um homem e sem mais nada com ele do que um anel de ouro na mão; tendo retirado o anel, voltou com ele à superfície. Ora, na época da reunião costumeira dos pastores, para apresentar ao rei um relato no que se refere aos rebanhos, ele chegou usando o anel em questão. Mas, uma vez estando com os outros, aconteceu-lhe de girar em direção de si, por acaso, o engaste do anel dentro de sua mão. Ora, tão logo aconteceu isso, ele se tornou invisível para os que estavam sentados ao seu lado, que se puseram a falar dele como de alguém tivesse ido embora. Surpreso com isso e, tendo recomeçado a tatear discretamente o anel, voltou o engaste para fora e, uma vez que o girou, tornou-se visível novamente. Tendo refletido em seguida sobre isso, Poe à prova a propriedade do anel e os resultados respondem à sua expectativa: quando gira para dentro o engaste, torna-se invisível quando gira para dentro o engaste, torna-se invisível e visível quando gira para fora. Depois de ter assim reconhecido que o era infalível, introduz-se na delegação que vai até o rei, e uma vez chegado ao palácio, seduz a esposa deste; depois, com a cumplicidade desta, ataca o rei, mata-o e se apossa do poder.
Dito isto, suponhamos que haja dois anéis deste gênero; que um, o justo põe no dedo e o outro, o injusto o põe; pode-se crer que não se encontraria um só homem com coração de suficiente boa têmpera para permanecer na justiça, de ter a coragem de se manter à distância do que pertence a outro e não se apossar disso, quando lhe é possível tomar com segurança, no mercado, tudo o que lhe agradasse; penetrando nas casas, ter comércio com quem lhe agradasse; matar, tanto quanto libertar das cadeias quem lhe agradasse; em suma, fazer tudo, como um deus na condição humana! Ora, conduzindo-se deste modo, este justo não faria nada que o distinguisse do outro, mas seria para o mesmo objetivo que ambos caminhariam. E seguramente existe, poder-se-ia dizer, séria razão em pensar que ninguém é justo de bom grado, mas por imposição; indício de que não existe aí um bem possuindo um valor independente, posto que em todas as ocasiões em que alguém puder sequer ter imaginado ser indiferente cometer uma injustiça, cometerá uma injustiça; sim, porque todo homem está convencido de que a injustiça possui um valor independente, vantagens muito superiores à da justiça: convicção justificada, dirá o que fala a favor de tal doutrina. Se, com efeito, um homem que se arrogasse tal licença, não consistisse nunca em cometer uma injustiça, não tomasse o que pertence a outro, seria, na opinião de todos comumente, o que há de ser mais infeliz e o que há de mais irracional. Por outro lado, em face um dos outros, fariam seu elogio, mentindo uns aos outros em virtude do medo que têm de ser vítimas da injustiça. Eis, pois, sem dúvida, o que é, quanto a este ponto (Platão – A república, Livro II).

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